No início do século XIX, em uma Paris prestes a ter seu tecido medieval rasgado pelos enormes bulevares de Haussmann, a romancista George Sand se vestia como homem para andar pelas ruas. Segundo seus diários, “de calças e botinas podia voar de uma ponta a outra da cidade, qualquer que fosse o clima, a hora e o local”. Ninguém lhe dava atenção, ninguém adivinhava seu disfarce, ninguém a olhava ou criticava, ela era mais um “átomo perdido naquela imensa multidão”. Graças às vestes masculinas, Sand vivenciou incursões destemidas e percursos solitários, como um verdadeiro flâneur. Experiências que, posteriormente, se tornaram fundamentais para a construção de suas narrativas de sucesso.
Por definição, o flâneur – conforme Walter Benjamin descreveu a partir da obra de Charles Baudelaire – é um personagem errante e observador, típico da literatura europeia do século XIX. Essa figura anônima que vagava lenta e ociosamente pelas ruas de Paris, foi conceituada desde sua origem como exclusivamente masculina, já que as mulheres não possuíam a mesma liberdade dos homens para andar pelas cidades pois estavam entrincheiradas na esfera doméstica. Ademais, ao que tudo indica, para se ter o status de flâneur, além de estar "autorizado" a vagar pela cidade, era preciso gozar de certos privilégios, como ter tempo livre para tal, sem responsabilidades que o impediriam de andar a esmo pelas ruas.
Outro critério essencial para um flâneur – que tampouco caberia às mulheres – é a importância de sua invisibilidade ou sua capacidade de se tornar multidão. Visto o alvoroço que se formava, e ainda se forma mesmo dois séculos depois, quando há uma mulher sozinha no espaço público, essa premissa, de fato, seria difícil de cumprir. A mulher é visível demais para passar desapercebida. Uma condição que, assim como exclui as mulheres dessa personificação, elimina determinadas camadas da sociedade, tal qual afirma Janet Wolff quando escreve, em seu livro Invisible Flaneuse: Women and the Literature of Modernity (1985), que “a capacidade de vagar e olhar sem ser notado ou temido também pertence a certas classes sociais mais do que outras”.
Respeitando recortes geográficos e culturais, se aventurar pela cidade ainda hoje implica também um risco à integridade física das mulheres. O iminente perigo de agressão e assédio o qual faz com que elas recorrentemente “negociem com o espaço público” – usando a expressão de Gil Valentine (1989) – mesmo nas tarefas mais corriqueiras e essenciais, restringe os percursos e apropriações. Ou seja, no decorrer dos séculos, os percalços enfrentados pelas mulheres no vagar pelas ruas mudaram e até mesmo diminuíram, mas seguem presentes cotidianamente. Sendo assim, “uma flâneuse nunca é despreocupada, ela precisa desviar do olhar inquiridor de julgamentos, de admiradores ou do assédio. E, para validar sua perambulação, a flâneuse precisa não ser vista. Porém, é justamente esse frustrante paradoxo que nos leva a desafiar a prática da flâneuse em outras instâncias, como um documento de resiliência, que celebra figuras femininas lutando para serem vistas – de outra maneira”.
Ao levar em conta essas questões percebe-se que de fato o flanar de um homem e o de uma mulher são muito diferentes, mas isso não quer dizer que ele não exista em ambos os casos. São diferentes formas de apropriação da cidade, cada qual com suas estratégias e graus de dificuldade.
Laura Elkin, autora norte-americana que apresenta a correlação entre os termos flâneur (masculino) e flâneuse (feminino) ressalta em seu livro que essa definição não existia no idioma francês, corroborada com a ideia de muitos teóricos os quais afirmavam que não poderia haver uma figura feminina que correspondesse ao flâneur. Eles defendiam que esse era um privilégio do homem, ainda que sempre existiram mulheres – na literatura, na fotografia, na arte – que desafiavam as imposições sociais e saíam as ruas para observar e pesquisar. A autora cita, além de George Sand, outras escritoras modernistas como Jean Rhys e Virginia Woolf que utilizaram suas incursões pela cidade como fonte fundamental de inspiração. Nesse esforço, Elkin reconhece e inaugura um movimento que considera a existência das flâneuses desde a criação do termo, mas claro, sem desconsiderar suas inúmeras dificuldades para exercer tal atividade.
Longe de generalizações – tanto em relação às mulheres do século XIX quanto às do século XXI – é importante esse movimento que revisita a história e valoriza as interpretações da cidade sob o ponto de vista das flâneuses, assim como, é fundamental entender as diferenças que ainda persistem na tarefa de explorar as ruas e enaltecer essas iniciativas exploratórias, principalmente quando vindas de mulheres.
Nesse sentindo, Elkin reitera que somente quando nos tornamos cientes dos limites invisíveis das cidades é que podemos desafiá-los. A flâneuse, portanto, não apenas altera o modo como nos movimentamos pelo espaço, mas intervém na organização dele. Assumir a existência dessa figura desde o século XIX é validar a conquista da rua como um espaço de todas nós, cativado lentamente ao longo dos séculos a cada vez que uma mulher fazia um malabarismo para sair de casa. Dessa forma, assim como Nunes afirma, sugerir que seria impossível haver uma versão feminina do flâneur é limitar as formas de interação das mulheres com a cidade ao modo como os homens interagem com ela. Fala-se de costumes culturais e sociais, de restrições, mas as mulheres sempre estiveram ali, o que nos falta é entender o que as caminhadas pela cidade significavam e significam para elas.